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A Jornada do Herói: a fuga

O Regresso - 2015
O Regresso - 2015

Chamaram-no para ser herói e ele hesitou. Hesitar pode significar perder-se, mas "nem todos os que hesitam se perdem" como subscreve Joseph Cambell. É verdade, porque hesitar não significa recusar e é a recusa que abre as portas a uma fuga desenfreada. Aquele que hesita, pode decidir aceder e dar continuidade ao que é "o devir", mas aquele que recusa apresenta uma oposição convicta. O seu Ego apresenta-se implacável, enfrentando os ventos da vida. E é por ordem deste Ego, que o nosso herói de barro se vai perder.


Perder-se constitui a aparição de problemáticas do foro psicológico, tais como Neuroses, Psicoses, Depressões, Transtornos do Pânico, Ansiedades, entre outras. Perdido é o indivíduo que perdeu o controlo sobre os seus processos psíquicos. Recusar o chamado é comprar um bilhete para a primeira linha de uma crise ainda maior do que a crise que constitui o chamado. No quesito emocional devíamos saber que uma crise não aceite atiça uma crise muito maior e tal como uma onda que se eleva a uma altura perigosa, ser varrido por ela não será agradável levando a prejuízos, não raras vezes fatais.

O escolhido pode assim passar por períodos sombrios por ter "atiçado" o mar da psique, tal como um feitiço que se abate sobre a sua mente e se volta sobre si mesma: acaba num puxão regressivo. A força da psique outrora voltada ao mundo exterior, introjeta-se através da crise, voltando-se para dentro dando origem a diversas patologias.


O escolhido pode então manter-se rígido face á crise e nunca mais sair dela, ficando cativo desse feitiço, sono, cegueira e de toda a espécie de incompetência para a libertação. Clarice Lispector afirma com alguma razão que "perder-se também é caminho", e não lhe dou a razão toda porque perder-se só pode ser visto como caminho até á terceira página. Um perder-se que seja profundo não só não é caminho, como impossibilita qualquer movimento. E aqui aproveito para sugerir que se destrone a romanização desses extravios, pois até no perder-se é preciso ser comedido, já o caminho de regresso não é tão óbvio como se poderia pensar. Reformulo então, que perder-se também é caminho - só e se o nosso herói conseguir voltar - lembremos aqui o Fio de Ariadne e do labirinto onde se encontrava o Minotauro.


O herói adiado, movido pelo Ego rígido foge de si mesmo numa tentativa de contornar processos que exigem atitudes objetivas e transformações genuínas, debatendo-se na esperança de poder manipular o script da própria vida.

De tanto fugir pelos corredores labirínticos da psique, adentra lugares cada vez mais sombrios e assustadores. Depara-se com imagens infantis inconscientes e arquetípicas pessoais, mas também com todo o tipo de conteúdos inconscientes coletivos, do quais nada sabe e para os quais não está preparado. A fuga dá lugar á necessidade de se esconder e o indivíduo acaba trancado num espaço escuro no labirinto da sua mente. Esta é a crise da recusa. É a crise de quem vive sob algum desarranjo psicológico, permitindo ser definido por ele. É o mutismo, é a prisão psicológica, é a estagnação, o emparedamento, o bloqueio, a estase psíquica.


Se tivermos atenção suficiente percebemos que á nossa volta convivemos com pessoas que hesitaram o chamado, mergulharam na crise e com auxilio saíram dela. Desapegaram-se do controlo, da inflexibilidade, do orgulho e abriram-se ao que a vida orientava, porque como dizem "o que tem de ser tem muita força".

Na verdade o feitiço não tem pretensão de ser eterno, ele é uma mera consequência da recusa e da fuga. Mas isto não impede que tantos sucumbam a ele de forma fatal. Aceitar o chamado, mesmo imerso na crise é obrigar o Ego a render-se e nem todos aceitam fazê-lo. Tenho a nítida impressão de que a vida é uma poderosa destruidora de Egos, e as crises demonstram estes processos de golpe.


Em Alquimia, a operação da calcinação - Calcinatio - explica o aquecimento absoluto de um material até á completa evaporação da água, atingindo a purificação total. Este processo é psicológico e tem como objetivo a depuração da personalidade, libertando-se de ilusões e padrões autodestrutivos através da força espiritual "Self" que é representado pela lei das correspondências como o Fogo.


Uma das receitas da Calcinatio encontrada em “The twelve keys” de Basil Valentine, alquimista alemão do Séc.XV refere o seguinte:

“Toma um feroz lobo cinzento, que é encontrado nas montanhas do mundo, nas quais uiva, quase selvagem, de fome. Dá-lhe o corpo do rei e quando ele tiver

devorado, queima-o totalmente, até torna-lo cinzas, numa grande fogueira. Por este processo, o rei será libertado e quando isso tiver sido realizado por três vezes, o leão terá suplantado o lobo e nada encontrará nele para devorar. E assim o nosso corpo se terá tornado apropriado para o primeiro estágio do nosso trabalho.”


Os Alquimistas alistavam-se para trilhar a Jornada do Herói mesmo sem a vida convocar de forma implacável. Santos e profetas de todas as linhas de fé também o fizeram. Todos viveram vidas complexas e daí retiraram um mérito que não termina na lápide, que transpõe o espaço e o tempo, que é substrato consciencial de uma existência de refinamento e progresso interior.


(continuação na próxima semana)




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