A jornada do Herói: o 1º Limiar
- Wanda Velloso
- 27 de ago.
- 3 min de leitura

"Ai quem me dera uma feliz mentira que fosse uma verdade para mim!"
Júlio Dantas
O nosso herói de vidro tem agora mais de louco que de herói, e embora avance além das muralhas do que conhece, guarda ciosamente no seu âmago o desejo de se manter vivo numa ilusão reconfortante como se fora real. Logo se apercebe que não há caminho em ficar. Confronta-se assim com o princípio de realidade que pode chocar com a sua dureza: a autoaniquilação ou o futuro?
Eis que surge a trágica ironia: "avançar poderá matar-me, mas se ficar morrerei." Se a morte é garantida que seja como diz o apóstolo Paulo em Filipenses 1:21 "Para mim viver é Cristo, morrer é lucro". Bom, a morte está garantida, mas não o estava já desde o início? Não é logo desde o começo a máxima garantia que trazemos? Na verdade, heróis de vidro preferem não pensar muito nisso. E é talvez no momento em que cruzam o primeiro limiar que refletem sobre ela.
É o passo deste louco que abre o caminho no meio do caos e é a sua coragem que o mantem em movimento, tal qual uma chama no meio da escuridão, peregrinando pelas sombras, percorrendo um caminho tropegamente iluminado no vazio. É o início da convicção sem base alguma. É talvez a fé irracional ou o impulso vindo de um lugar que ele não sabe nomear. A razão afunda-se nestas águas escuras ou é derrubada contra as rochas das falésias do psiquismo. A mente vê-se tragada por uma limitação que não consegue superar, mas uma outra instância o conduz devagar pelos ermos vales obscurecidos do caminho.
Estas paisagens ignotas são o palco perfeito para que o destino se vista da cor e da forma do conteúdo interno do Herói. Toda a sorte de conteúdos inconscientes cai em enxurrada espalhando-se pelos espaços como um grande espelho que os projeta de volta. É preparada uma narrativa monstruosa ou profundamente erótica onde o nosso herói caminha, de modo a experienciar o seu próprio mundo interior: vemos as ninfas e nereidas na Ilha dos amores num banquete de eflúvios carnais e vemos o Adamastor a quebrar caravelas nos mares de África do Sul. Eros (pulsão de vida) e Tanatos (pulsão de morte) dançam uma dança de guerra onde o nosso herói só pode gemer de prazer ou de medo.
Como chacais atacando a partir de dentro, assim é o pânico, o medo súbito e devorador. O pequeno louco debate-se sobre si próprio, tentando vencer um inimigo imaterial que o consome até aos ossos. Tudo o que pode fazer é manter-se em movimento enquanto é levado ao colo pelo pânico, pela angustia e pela solidão. Outrora tem vislumbres de incendiados desejos aos quais tenta resistir, refreando tentações de toda a espécie. Quer numa ou noutra situação, cai e levanta-se vezes sem conta, percorrendo um chorrilho de peripécias.
Mas o herói não pára, porque este caminhar é um impulso agudo do coração.
É para se tornar indivisível que se faz este caminho, para se tornar indivíduo - (aquele que não se divide; aquele que é uno). É pois a Jornada da União. Mas o nosso herói não sabe. Ele apenas caminha.
(continuação na próxima semana)
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